Uma investigação da Polícia Federal (PF) revelou um dos maiores esquemas de fraude em concursos públicos já descobertos no país, com ramificações em diversos estados e impacto direto em seleções de grande porte, como o Concurso Nacional Unificado (CNU), a Caixa Econômica Federal, e concursos das Polícias Federal, Civil e Militar, além de universidades e bancos públicos.
A operação, batizada de Última Fase, foi deflagrada na quinta-feira (2) e desmantelou uma organização criminosa que cobrava até R$ 500 mil por aprovação.
De acordo com a PF, o grupo funcionava como uma empresa familiar, com base em Patos (PB), e utilizava métodos tecnológicos sofisticados, como o uso de dublês, pontos eletrônicos implantados cirurgicamente e comunicação via rádio em tempo real. O esquema envolvia mais de dez pessoas, entre familiares e associados, e operava há mais de uma década, com ramificações em ao menos oito estados brasileiros.
Os valores cobrados variavam conforme o cargo e a dificuldade do concurso. O pagamento podia ser feito em dinheiro, ouro, veículos ou até procedimentos odontológicos, usados para mascarar o suborno.
Como funcionava o esquema de fraudes
A investigação, conduzida pela Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários da PF na Paraíba, revelou que os criminosos simulavam uma estrutura profissional de "consultoria de concursos", oferecendo aprovações garantidas a candidatos dispostos a pagar altos valores.
Segundo o relatório da PF, o grupo era liderado por Wanderlan Limeira de Sousa, ex-policial militar expulso da corporação em 2021 por envolvimento em crimes de peculato e abuso de autoridade. Wanderlan era o principal articulador das fraudes: recrutava candidatos, negociava preços, montava a logística das provas e distribuía os gabaritos.
A operação identificou que o grupo atuava desde pelo menos 2013, vendendo aprovações em concursos de alto escalão, como o da Polícia Federal, Banco do Brasil e Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Em 2024, o líder chegou a se inscrever no CNU apenas para comprovar a eficiência do método, e conseguiu ser aprovado para o cargo de auditor fiscal do trabalho, o de maior salário do certame, R$ 22,9 mil mensais. Após a divulgação do resultado, ele não compareceu ao curso de formação.
Família Limeira: o núcleo central da fraude
O esquema tinha como núcleo principal a família Limeira, composta por Wanderlan, seus irmãos, esposa, cunhada, filho e sobrinha, todos com papéis definidos. Veja:
- Wanderlan Limeira de Sousa - Líder do grupo; articulava o esquema e controlava a distribuição de gabaritos;
- Valmir Limeira de Sousa - Coordenava a logística e recrutava candidatos; beneficiado no CNU 2024;
- Antônio Limeira das Neves - Financiava fraudes, inclusive a aprovação da própria filha;
- Geórgia de Oliveira Neves - Esposa de Antônio; suspeita de atuar na lavagem de dinheiro do grupo;
- Wanderson Gabriel Limeira de Sousa - Filho de Wanderlan; responsável pela parte técnica das fraudes, incluindo o uso de dispositivos eletrônicos e rádios;
- Larissa de Oliveira Nunes - Sobrinha, usada como "candidata vitrine", exibindo aprovações fraudulentas para atrair novos "clientes".
O grupo contava ainda com associados externos, entre eles Thyago José de Andrade, conhecido como "Negão", que controlava os pagamentos; Laís Giselly Nunes de Araújo, advogada recifense com 14 aprovações suspeitas; Luiz Paulo Silva dos Santos, técnico especialista em sistemas de transmissão e suspeito de fraudar 67 concursos; e Ariosvaldo Lucena de Sousa Júnior, policial militar do Rio Grande do Norte e dono de uma clínica odontológica usada para lavar dinheiro.
Gabaritos idênticos e depósitos milionários
Uma das principais provas da investigação foi a análise dos gabaritos do Concurso Nacional Unificado (CNU) 2024, organizado pela Fundação Cesgranrio. Quatro candidatos, sendo Wanderlan, Valmir, Larissa e Ariosvaldo, apresentaram respostas idênticas, inclusive nos erros, mesmo tendo feito provas de diferentes tipos.
O laudo técnico indicou que a probabilidade de coincidência aleatória era de uma em bilhões, comparável à chance de ganhar o prêmio máximo da Mega-Sena quase 20 vezes seguidas.
A PF também descobriu depósitos suspeitos nas contas dos investigados. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) detectou movimentações superiores a R$ 1,5 milhão em contas ligadas a Geórgia Neves, que não possui vínculo empregatício desde 1998.
Para ocultar a origem dos recursos, o grupo recorria à compra e venda fictícia de imóveis, utilização de "laranjas" e negociações de veículos. Em um dos casos, uma motocicleta foi usada como forma de pagamento por uma vaga na Caixa Econômica Federal.
Veja a comparação dos gabaritos no CNU 2024 dos envolvidos:
Fraudes em série e abrangência nacional
A PF mapeou dezenas de concursos fraudados entre 2015 e 2025, atingindo tanto seleções estaduais quanto federais. Além do CNU, as investigações apontam irregularidades em provas da Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Polícia Federal, Polícia Civil, UFPB, Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE) e até de prefeituras municipais.
Ao todo, pelo menos 10 pessoas foram beneficiadas no CNU 2024, sendo identificadas como aprovadas de forma irregular ou intermediárias de propina. Entre elas estão: Eduardo Henrique Paredes do Amaral, Allyson Brayner da Silva Lima, Mylanne Beatriz Neves de Queiroz Soares, Janaína Carla Nemésio de Oliveira e Aially Soares Tavares Pinto Xavier.
Operação Última Fase
A ação da PF teve apoio do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal da Paraíba, que autorizou três prisões preventivas, duas em Recife e uma em Patos, além de mandados de busca e apreensão em endereços ligados à quadrilha.
Na decisão judicial, o juiz Manuel Maia de Vasconcelos Neto destacou a gravidade do caso:
"A organização contou com a participação de outras pessoas, ainda não identificadas, para fazer a prova, cada uma com uma matéria específica, situação que garante a aprovação do contratante. O custo estimado é de R$ 300 mil por candidato."
A PF ressaltou que as bancas organizadoras não têm, até o momento, envolvimento direto comprovado nas fraudes, mas há suspeita de colaboração de servidores públicos e profissionais da saúde na instalação dos dispositivos eletrônicos usados durante as provas.
Repercussão e medidas de segurança
Após a deflagração da operação, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública anunciaram reforço nas medidas de segurança para o CNU 2025, aplicado no último domingo (5).
As novas providências incluem:
- provas com códigos de barras únicos por candidato;
- detecção eletrônica de pontos nas salas e banheiros;
- uso de detectores de metal sob supervisão policial;
- sigilo do tipo de prova até a divulgação dos gabaritos;
- escolta policial reforçada durante o transporte e armazenamento das provas.
Defesas e posicionamentos
O policial militar Ariosvaldo Lucena de Sousa Júnior, por meio de sua defesa, nega qualquer envolvimento com as fraudes. Segundo seus advogados, as acusações se baseiam apenas em indícios e serão refutadas no curso do processo, com a apresentação de provas de inocência.
Já o Ministério da Gestão reiterou, em nota, que acompanha as investigações e cumpre todas as determinações judiciais. A pasta informou que aguarda os desdobramentos da operação para adotar eventuais medidas administrativas contra os envolvidos.
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